09/IX - SUOR E SANGUE TUPI
IX
Pausa na narrativa.
No galho alto de um Jacarandá, um
Canário-da-Terra, o nosso popular Chapinha, ou Cabecinha-de-Fogo, como é
chamado em diferentes regiões do Brasil, quebra o silêncio momentâneo com o
estalar seu canto cheio de alegria. E quase oculto entre as folhas de uma
Cerejeira, ouvia-se, em dueto com o canário, o lamento de um Sabiá-Laranjeira;
enquanto um beija-flor cruza o espaço aberto e se aproxima de um cacho de
banana em formação para dividir o mel da flor da bananeira com um bando de
pequenas abelhas.
Todos param um instante, distraídos,
voltados para cima, ao derredor, procurando descobrir em que galho cantavam o
Chapinha e o Sabiá, tentando acompanhar a agilidade do Beija-Flor que girava em
volta de mais flores, numa parceria harmoniosa com as abelhas.
- Professor!... – Robson levanta o
dedo.
- Pode perguntar.
- Será que Cabral ouviu aqui o canto
de um Chapinha?
- Com certeza. Tanto do
Cabecinha-de-fogo, como do sabiá, do pintassilgo, de tantos outros pássaros que
encantam pelo canto e pela plumagem. Escutem o que o Comandante Américo
Vespúcio disse da fauna alada brasileira: ... pássaros de diversas formas, e cores, e tantos papagaios que era
deslumbrante; alguns corados como carmim, outros verdes e cor de limão e outros
negros, e encarnados, e o canto dos pássaros que estavam nas árvores era coisa
tão suave, e de tanta melodia, que nos acontece muitas vezes estarmos parados
pela doçura deles. E a mata é de tanta beleza e suavidade que pensamos estar no
Paraíso Terrestre.
Em seguida, o Botânico convida outra
vez a Professora para substituí-lo na palestra. Ela concorda e começa falando
da exploração do índio pelo branco:
- Para o europeu os selvagens tinham
parentesco com os monstros medievais. Andavam nus e cultivavam hábitos
estranhos, portanto, considerava-se superior, com direito sobre a terra, à
liberdade e a própria vida do índio. Partindo deste princípio, os exploradores
brancos utilizaram os silvícolas para cortar e carregar o Pau-Brasil para seus
navios, em troca de pequenos objetos que mal valiam um vintém!
Jaqueline pede mais explicação:
- Desculpe! Não entendi direito...
- Como o nosso litoral era habitado
por tribos indígenas de boa índole, pacíficos e dóceis, fazer escambo com essa
gente foi moleza. Ainda mais que as ferramentas europeias eram de grande
serventia ao índio na luta que travava com a Natureza pela sua sobrevivência.
- Escambo!
- Escambo, meu Caro Chico, era a
maneira de realizar uma troca de um produto por outro, entre pessoas
interessadas, sem envolvimento de dinheiro. Os índios davam Pau-Brasil aos
europeus; em troca, recebiam quinquilharias ou ferramentas, coisas de pouco
valor monetário.
- Então, o europeu era fera na
tapeação dos índios! - debocha Marildinha.
A expressão do rosto da Professora
muda rapidamente. Alisa com as palmas das mãos a frente da blusa, e censura:
- Uma judiação! Os nativos eram
ignorantes, limitados às suas aldeias. Inocentes que nem crianças ficavam até
zonzos diante de tantos objetos desconhecidos. Tudo era novidade: espelho,
pente, guizo, colar de miçangas; ferramentas, como machado e faca, necessários
para a própria obtenção da madeira para o branco; foices, enxadas, cunhas de
ferro, tesouras, panelas, anzóis, tambor, sininho, pedaços de tecido, gorro
vermelho. Por qualquer um desses objetos, um índio era capaz de dispor tudo que
possuía, ou trabalhar duro de sol a sol para o branco, em troca de um
presentinho de nada.
- Poxa, Pessoal, sinto até um frio
por dentro...
- Dose acreditar, Maria Vitória
Aparecida...
- Maria Vitória Ferreira Pinto, seu
Chico Decoreba, e nem levantei o braço quebrado, dessa vez.
- Mas os índios aceitavam tudo numa
boa, Professora?
- Para eles, Marisa, uns meninos, era
uma festa... A maioria das tribos trabalhava com satisfação para o europeu
invasor. Ainda mais cortando Pau-Brasil com machado de ferro! Comemoravam o fim
da idade da pedra.
Ana Laura zomba:
- Engabelavam os coitados com
coisinhas iguais aos mixurucos presentes das nossas lojas de 1,99!
- E até menos...
Hunnnnssss gerais.
- Coitados, Dona Diana! Essa
exploração deve ter sido a parte mais amarga da história – conclui Renata,
inconformada.
Maria Vitória sente um frio por
dentro. Pensa no sofrimento dos índios. Mas fica calada.
Cidinha levanta uma dúvida:
- Professora: se os índios não
falavam a língua dos brancos, como entendiam e obedeciam as ordens dos
exploradores?
- O homem civilizado, quando esperto,
arruma sempre um jeito para garantir suas vantagens, levar o seu lucro com o
mínimo de gasto e quase nenhum trabalho pessoal. No princípio, fazendo gestos.
Depois, aprendendo a linguagem dos indígenas e também ensinando a eles palavras
de ordem, em sua língua. Não era tão difícil assim.
- Como que um nativo escolhia o
objeto de seu agrado?
- Filipe, os brancos empregavam uma
tática infalível: expunham os produtos na beira da praia. Coisinhas bem
vistosas, brilhantes, coloridas! Atraídos, os nativos ficavam boquiabertos
diante de tanta bugiganga. Logo, um interessado apontava com o dedo, mostrando
o que desejava. Pulava e gritava palavras na sua língua, que os exploradores
interpretavam como eu quero isso ou aquilo. Aí, o espertalhão branco fazia o
índio entender:
- Muito bem, esse espelho será seu. Primeiro,
corte dez pés de Arabutã, o nome do Pau-Brasil em Tupi-Guarani. E mostrava os
dedos das mãos.
O índio escancarava os dentes de
alegria. Pegava um machado, cortava as árvores, trazia a madeira para a
Feitoria e ganhava o espelho. Outro ficava doido por um gorro vermelho, aí o
explorador impunha:
- Ótimo, meu Amigo.
- Mui amigo! – grita o Luiz Fernando.
- Traga tantos troncos bem
aparadinhos de Ibiratinga, outro nome que os índios davam ao Pau-Brasil. Sempre
com gestos de cortar galhos, carregar nos ombros. E mostrava os dedos das mãos:
tantos e tantos toros.
Um morubixaba, caído de amores por
uma campainha, um mero sininho, que retinia diferente de todos os sons já
ouvido, se tornava uma presa fácil. O explorador abusava:
- Tudo bem. Será seu e mais esta tira
de pano vermelho, mas quero o navio cheio de Muirapiranga, referindo-se ao
Pau-Brasil; e dos melhores, dos mais grossos. Fazia o gesto já conhecido de
aparar a árvore. Entendeu? Índio nenhum reclamava da sorte. Diante de uma
mercadoria que preenchia seus sonhos, não resistia, corria para mato com um
machado bom de corte, mourejava de sol a sol, trazia a madeira e trocava pelo
objeto desejado, ou melhor, sonhado. Não havia sábado, nem domingo de folga
para um índio, depois do descobrimento. A semana toda derrubava a floresta para
algum explorador europeu.
Ana Laura levanta-se como se impelida
por uma mola, corada:
- Que gente malvada esses
comerciantes brancos, faziam tudo para enganar os coitadinhos! Não tinha índio
bravo no Brasil?
- Para botar para correr aquela corja
de exploradores...
- Índios bravos? Ah, sim, havia.
Lógico, mais para o interior do Continente. Como exemplo os Caetés, que
habitavam desde a Ilha de Itamaracá até as margens do Rio São Francisco.
Ferozes, rebeldes e andrófagos, comedores de carne humana; eram inamansáveis.
Defendiam seu território com bravura, aliás, como os verdadeiros donos da terra
não permitiam ser capturados, reagindo às ameaças dos invasores estrangeiros.
Já os Tupiniquins, os Tamoios, os Tabajaras, os Carijós e outros que viviam no
litoral eram de boa índole, aceitando com facilidade o entrosamento pacífico e
danoso com os europeus.
Maria Vitória lembra:
- O Bispo Sardinha foi devorado pelos
Caetés. Confere, Professora?
Sim. Em junho de 1556. Numa viagem
para Portugal, seu navio Nossa Senhora da Ajuda naufragou-se nas costas de
Alagoas. O Bispo e outros marinheiros salvaram-se, mas foram aprisionados e
devorados pelos índios Caetés. Tribos tão selvagens que até o Padre José de
Anchieta tinha medo deles. Eram tribos bárbaras e indômitas, aproximam-se mais
à natureza das feras que à dos homens. Mais tarde foram exterminados pelo
Governador Mem de Sá.
E depois de uma pausa:
- O Comandante Antônio Pigafetta, da
frota de Fernão de Magalhães, escreveu sobre a antropofagia de índios no
Brasil: ... comem algumas vezes carne
humana, porém somente a de seus inimigos. Mas não é por gosto ou apetite que a
comem. Não os comem nos campos de batalhas, nem tampouco vivos. Despedaçam o
corpo e repartem entre os vencedores...
- Quantos índios existiam aqui no
tempo de Pindorama?
- Boa pergunta, Rita. Antes de
Cabral, supostamente mais de cinco milhões de aborígines viviam aqui dentro das
matas e no litoral. Os primeiros extintos foram os Tupiniquins, pouco tempo
depois da chegada de Cabral. Por volta de 1570, a tribo já era considerada
extinta.
Índios morriam pelos maus tratos,
massacres e também pelas doenças transmitidas pelos brancos, como a varíola, disenteria,
tifo, lepra, pneumonia e outras. A mais devastadora dessas epidemias foi a
varíola, cujos sintomas, de acordo com os gentios num relato ao Frei Bernardino
Sahagun, em 1555, eram: ... tosse, grãos
ardentes, que queimam... Muitos morreram com a pegajosa, compacta, dura doença
de grãos.
De lá para cá desaparecerem
aproximadamente 1.200 línguas nativas no Brasil e, com elas, seus povos. Hoje,
somando todas a Nações Indígenas, são menos de trezentos mil índios. Cento e
sessenta mil na região amazônica, falando aproximadamente cento e cinquenta
línguas distintas. Juntos, mal lotariam três estádios de futebol.
- Puxa!
- Dose!
- Fogo!
Ana Laura ergue um braço e pede para
recitar o versinho chamado Erro de Português. O Professor concorda e ela
declama:
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio.
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha
Despido o português.
Risada geral.
- Ana Laura, parabéns, nota dez –
festeja a Professora. E virando-se para a turma: - Cinco pontos para quem
acertar o nome do autor do poema. Não vale a resposta de Ana Laura.
Alguns abanam os braços, gritando:
- Eu... Eu
- Eu...
- Você – aponta a Professora para
Filipe.
- Foi o poeta paulista Oswald de
Andrade.
Felício levanta-se do seu banquinho e
se dirige à Professora, sorrindo:
- Muito bem!... Muito bem!...
Professora Diana, ótima sua explicação. Ana Laura, boa a lembrança do poeta
modernista Oswald de Andrade. Anote aí... Estudar o Movimento Pau-Brasil,
liderado por esse escritor no Brasil. Parabéns para todos.
- Ótimo que gostou, Diretor. Agora,
sua vez de continuar.
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